Em 17 de setembro de 1922, nasceu o poeta e político angolano António Agostinho Neto. Autor de obras como Sagrada Esperança (1975) e primeiro Presidente da República de Angola, Agostinho Neto compreendia a arte como um meio de se posicionar, propagar ideias e impulsionar transformações socioculturais. Não à toa, sua prolífica produção literária surgiu no contexto de associações estudantis, perseguições, prisões, propagação de ideais políticos e princípios libertários.
Junto a outros intelectuais angolanos, Agostinho Neto buscou criar uma literatura própria, dissociada de Portugal, que representasse os conflitos e desejos de seu povo. “Uma arte que deveria desempenhar um papel fundamental na formação do solo político-ideológico onde poderia ser construída a nova Angola, a ser descoberta e libertada”,
Serviço de Comunicação Social: Quem foi Agostinho Neto?
Jornalista Isaias Dutra: O nome Agostinho Neto talvez reverbere com mais força no atual cenário quando conectado à sua faceta enquanto político, tendo sido o primeiro Presidente da República de Angola, com a proclamação de independência em 1975.
Porém, ao me debruçar sobre a figura de Neto, certamente meu interesse esteve bem mais focado em sua persona enquanto poeta, e é dessa perspectiva que me atrevo a tentar apresentá-lo brevemente ao leitor contemporâneo. De início, destaco como característica marcante do projeto netiano de literatura a questão do potencial para a transformação sociocultural contido na arte, enquanto fator decisivo para a opção pelo fazer poético como modo de se posicionar e propagar ideais.
Também acho notável o fato de a vasta maioria dos poemas que compõem a trajetória de Neto nessa seara ter sido escrita em Portugal, uma vez que o grito ideológico libertário neles contido se dirige, como crítica artística, precisamente ao colonialismo português, tornado emblema da dominação e da opressão do homem pelo homem. Em 1947, Neto inicia sua estada nesse país, para cursar Medicina, na faculdade de Coimbra, na qual se formou, retornando à Angola somente em 1962, após 15 anos de associações estudantis, propagação de ideais políticos e princípios libertários, produções de correntes estético-temáticas, perseguições e prisões. E é em meio a esse contexto que suas obras literárias vêm à luz. Porém, a publicação de seu corpus mais maduro de poemas, na forma da coletânea Sagrada Esperança, ocorreu apenas em 1975, com a adição de três poemas, em relação à publicação de 1974.
Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam a escrita de Agostinho Neto?
Jornalista Isaias Dutra: Os textos foram influenciados por movimentos literários como o dos Jovens Intelectuais de Angola, que tinham o lema “Vamos descobrir Angola!”, e o movimento Mensagem, que surge como resultado justamente das ebulições desses jovens intelectuais e que culmina na publicação do boletim homônimo ao movimento, editado a partir de 1948, em Lisboa. Ambos os movimentos refletem a busca dos intelectuais angolanos que, frustrando os intentos da política assimilacionista de Portugal, insurgem-se para a criação de uma literatura própria e apropriada às questões e anseios de seu povo. Uma arte que deveria desempenhar um papel fundamental na formação do solo político-ideológico onde poderia ser construída a nova Angola, a ser descoberta e libertada.
A meu ver, Sagrada Esperança será o rebento duma vertente de literatura cuja modernidade se afirma justamente em sua aptidão para protagonizar um processo de ruptura que, valendo-se do alcance e dos desdobros de uma revolução estético-temática no âmbito das artes, visará a uma revolução político-ideológica, ou seja, afirmará a intervenção na realidade como foco bastante nítido. Em outras palavras, diria que o texto de Sagrada Esperança busca contribuir para uma mudança de mentalidades apta a atingir tanto os responsáveis pela criação e fortalecimento da ideologia de inferiorização do angolano (e do negro, de modo geral), como aqueles já atingidos e manipulados por ela, isto é, o povo alienado e a parcela dos assimilados que não se havia insurgido contra as tentativas de aculturação e escamoteação de sua história, tradição e civilização.
Também a leitura dos neorrealistas portugueses foi uma das influências da obra de Neto, e para verificar esses traços de uma poesia que dialoga com questões político-sociais e se faz veículo para o despertar de reflexões voltadas à denúncia das contradições e despropósitos da dominação do homem sobre o homem, convido o leitor a apreciar poemas como Quitandeira, Civilização Ocidental e Consciencialização.
Falando ainda sobre as influências que perpassaram a obra de Neto, vale destacar também a Negritude, dos francófonos León Damas, Aimé Césaire e Léopold Senghor; a Renascença de Harlem, com seus expoentes em Langston Hughes, Countee Cullen e Richard Wright; a chegada à Portugal da literatura dos Negros das Caraíbas, com as produções icônicas do haitiano Jacques Roumain e do cubano Nicolás Guillén; o modernismo brasileiro, com seus desdobramentos no regionalismo nordestino, e o impacto de autores como José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Jorge de Lima.
Serviço de Comunicação Social: Quais foram suas principais contribuições? Em sua análise, como elas repercutem atualmente?
Jornalista Isaias Dutra: Acredito que as colocações que destaquei até aqui permitem notar o aspecto ou viés mais social da obra de Neto, e seu posicionamento claro junto às vozes literárias que veem a obra de arte como “arma” para as revoluções de cunho intelectual que, no entanto, para ganhar verdadeiro relevo, precisam se desdobrar em mudanças significativas no tecido sociocultural das sociedades das quais tais obras emanam.
Contudo, devido às minhas particularidades, enquanto leitora e indivíduo, o contato que tive com Agostinho Neto foi feito à luz do contraste que sua obra gera quando comparada ao projeto literário da Mensagem de Fernando Pessoa, um dos mais proeminentes poetas portugueses, e que dispensa demais apresentações.
Considerando, então, uma leitura da obra de Neto feita entre os meandros de uma tal comparação, acabei chegando a uma conclusão que, creio eu, o próprio Neto acharia “revolta”, em relação à obra dele e de sua contribuição.
Ainda que seja inegável a influência que o poeta angolano e seus contemporâneos, sobretudo aqueles ligados ao movimento dos Jovens Intelectuais de Angola, exerceram sobre os literatos das gerações seguintes, e embora seja também bastante evidente que o trabalho de Neto, em seu viés literário, pavimentou o caminho para transformações importantes na arte angolana moderna, considero que sua maior contribuição ainda se encontra plasmada nas páginas de seus escritos, e aqui também incluo sua produção em prosa. Penso que a maior contribuição que um literato poderá deixar é aquela que se traduz no fazer poético em si mesmo. Uma contribuição que se consolida quando a pessoa dotada do talento de converter em arte suas angústias, alegrias, anseios e esperanças, suscitados pela crueza da realidade em que está inserida, não se esquiva a essa gigantesca tarefa, e presenteia a humanidade com suas obras, enriquecendo, com a sua visão, nossos infinitos debates e embates de ideias, porém, numa economia em que a beleza dê conta de ser o elemento arrebatador que sequestra o leitor para o solo da literatura e confere à obra o seu universalismo.
Enquanto mulher negra, não digo que me identifico com a obra de Neto meramente por coincidências raciais e, em alguma medida, culturais, uma vez que o panorama histórico do Brasil tem suas semelhanças com o de Angola. Mas afirmo, com mais segurança, que me identifico e me emociono com a literatura netiana, pois vejo nela beleza e simbolismos amplos o suficiente para falar ao meu próprio eu, para me sentir na pele da persona que ali se expressa, vendo-me também como sonhadora que anseia por suas próprias libertações, anseia por tipos de igualdade que precisam ser sempre reatualizadas em seus conceitos.
Num contexto em que o leitor tem sido praticamente ensinado a pensar e desenvolver o seu gosto de acordo com o que é ditado por vozes externas a ele, vozes que, muitas vezes, num afã por promover igualdade, acabam dando um enfoque desproporcional a esse ou aquele tipo de manifestação artística, a despeito de sua qualidade ou pertinência para o leitor, eu convido aqueles que possam estar interessados em conhecer mais sobre a poesia de Neto, a apreciá-la, tendo como norte não o que eu ou qualquer outro estudioso possa compilar a respeito dessa obra, mas sim, e acima de tudo, com base num desejo genuíno de fruição de boa literatura, feita por um homem de uma determinada época e contexto, para indivíduos de qualquer tempo ou lugar.