Ao longo da história, a relação entre a instituição religiosa e o profetismo sempre foi marcada por tensão. Sempre que a fé deixa o campo do discurso abstrato e se encarna na realidade concreta dos pobres, dos marginalizados e dos excluídos, a instituição se vê confrontada. Não raramente, reage com silêncio, contenção ou afastamento.
O episódio envolvendo o padre Júlio Renato Lancellotti, sacerdote da Arquidiocese de São Paulo, insere-se nessa longa e recorrente tradição histórica.
Padre Júlio completou 77 anos de vida no último dia 27 de dezembro, sendo 40 anos dedicados ao sacerdócio, após sua ordenação presbiteral em 20 de abril de 1985, pela imposição das mãos de Dom Luciano Mendes de Almeida, um dos mais respeitados nomes do episcopado brasileiro, reconhecido por sua fidelidade ao Evangelho e por sua atuação em defesa dos direitos humanos.
Desde então, sua trajetória pastoral tem sido marcada por uma atuação firme e constante junto à população em situação de rua, aos pobres urbanos e aos socialmente invisibilizados — grupos frequentemente esquecidos pelas políticas públicas e, não raras vezes, também pelas estruturas eclesiásticas. À frente da Pastoral do Povo da Rua, Lancellotti tornou-se uma figura pública nacional, extrapolando os limites confessionais e sendo reconhecido por amplos setores da sociedade civil.
É precisamente nesse ponto que nasce o conflito.
Quando um sacerdote deixa de ser apenas ministro do altar e passa a ser presença constante nas calçadas, nas ocupações, debaixo de viadutos e pontes, ele encarna um cristianismo que incomoda. Um cristianismo que não se alinha automaticamente aos discursos do poder, que questiona políticas excludentes e denuncia a criminalização da pobreza.
As recentes decisões institucionais envolvendo Padre Júlio expõem uma realidade desconfortável: a Igreja, enquanto instituição, ainda encontra dificuldades em lidar com profetas vivos. Profetas que não pertencem apenas às páginas da Bíblia ou aos registros históricos, mas que caminham hoje entre nós.
A tensão não é nova. O próprio Jesus de Nazaré foi rejeitado pelas autoridades religiosas de seu tempo exatamente por assumir a defesa dos pobres, dos doentes, dos pecadores e dos socialmente descartados. Como recorda a tradição cristã, “veio para os seus, e os seus não o reconheceram”.
Reduzir essa atuação pastoral a rótulos ideológicos ou enquadrá-la em categorias políticas simplistas é uma tentativa de esvaziar o núcleo do Evangelho. Cuidar dos pobres não é comunismo; é cristianismo. Defender a dignidade humana não é militância partidária, mas fidelidade ao projeto evangélico de Jesus.
O desconforto causado pela atuação de Padre Júlio revela mais sobre a relação da Igreja com o poder do que sobre o sacerdote em si. Em um país marcado por desigualdade social profunda, violência estrutural e exclusão sistemática, a presença de um padre que insiste em afirmar que os pobres não são problema, mas sujeitos de direitos, torna-se incômoda para setores políticos, econômicos e, por consequência, para parcelas da própria instituição religiosa.
A história demonstra que a Igreja cresce quando escuta seus profetas e se enfraquece quando os silencia. O cristianismo não nasceu nos palácios nem nos gabinetes, mas nas periferias do Império Romano. Sempre que se afasta desse lugar, perde força moral, credibilidade pública e densidade espiritual.
Independentemente de denominações, jurisdições ou vínculos institucionais, a defesa da dignidade humana permanece como critério central do Evangelho. Onde um profeta se levanta em favor dos esquecidos, ali permanece vivo o Cristo que a fé cristã anuncia.
Silenciar esse testemunho não apaga a profecia. Apenas reforça uma pergunta que atravessa os séculos e permanece atual: de que lado está a Igreja quando Cristo se manifesta nos pobres?
Por Rev. Lucas Macieira da Silva
Jornalista – MTB 0023238/MG
Gazeta Paulista – Sucursal Minas Gerais

































